domingo, 31 de agosto de 2008
DITADURA VARGAS Cartas libertam preso político
Uma comovente batalha contra a injustiça desperta no curso da história a incansável luta de uma heroína sertaneja
Quixeramobim. Aos 30 de novembro de 1950 a agente do então Correios e Telegraphos de Quixeramobim, Maria Dodó Cavalcante, recebia a confirmação de uma das mais importantes vitórias de sua vida, numa batalha pessoal pela dignidade humana. A rendição havia chegado num telegrama. Nele, o diretor do Presídio de Ilha Grande, no Rio de Janeiro, anunciava a libertação do último condenado da Era Vargas: “28.11.50. Referência vossa carta informo Demóstenes Gonzales Ferreira, foi solto, estando residindo segundo informação Rua Riachuelo, 214, alto 23, Rio de Janeiro, saudações, Cel. José R. Pessoa - diretor C.A.D”.
Após dois anos de persistente combate no “front” do Poder Federal da época, a telegrafista sertaneja havia conquistado enfim a liberdade do jornalista preso na Colônia Penal Agrícola de Dois Rios, construída no início do século passado, onde foram mantidos prisioneiros políticos da ditadura de Getúlio Vargas. Demóstenes, a esposa e filhos deixavam a carceragem carioca. Ao invés de canhões, dinamites, túneis e invasões, a justiceira nordestina utilizara cartas, dezenas delas, como munição. Afinal de contas sua sensibilidade, a solidariedade e a persistência eram suas armas. Com elas venceu o confronto em prol da liberdade.
Também pudera, na sua estratégia contou com o apoio de um marechal de guerra, nada menos que Eurico Gaspar Dutra. Além de excelente militar era o presidente da República naquele período histórico. Cabia a ele, ao Chefe de Estado sucessor de Getúlio Vargas, a agilidade no indulto ao prisioneiro. O penoso castigo já se estendia há mais de seis anos. O jornalista não era considerado um criminoso perigoso. Alegava estar preso injustamente, sem direito sequer a um julgamento justo. Mesmo assim continuava preso. Ele não se conformava. Nem os simpatizantes de sua causa. Maria Dodó era um deles.
Sentimento de justiça
Nessa época ela se dedicava à família. Acompanhava o marido, Miguel de Paula Cavalcante, funcionário da Inspectorial Federal de Obras Contra as Secas, mais tarde Dnocs, na construção de açudes pelo Interior do Ceará. Estavam em Mombaça, na região Centro-Sul do Ceará, a 295km da Capital, quando o destino trouxe a suas mãos comoventes relatos jornalísticos publicados na revista “O Cruzeiro”. Naquele momento o sentimento de justiça despertou-lhe o coração. Não hesitou. Logo sua primeira carta chegou à capital do “Paiz”, a cidade do Rio de Janeiro.
Sua aflição manuscrita também chegou às mãos do penitente e da esposa, Lys Castanho Gonzales. Passaram a se corresponder. A afinidade com a causa levou os casais a se comunicarem habitualmente, através das cartas. A cada uma delas Demóstenes Ferreira e a companheira demonstravam gratidão. Não somente pelos Cr 200,00 (moeda da época) enviados para minimizar as necessidades na sórdida clausura, como ele mesmo define a situação angustiante e dolorosa na Ilha Grande. A solidariedade e o sentimento de justiça eram mais significantes.
A amizade e a luta se fortaleceram quando Maria Dodó se tornou mãe. Com o primeiro filho para criar e os outros três que viriam a seguir, acabara se acomodando na Vila de Uruquê, distrito de Quixeramobim, no Sertão Central do Ceará. Transformou a simples e aconchegante morada à beira da via férrea no seu quartel general. Os sobrescritos não pararam mais até o dia em que finalmente partiram da Colônia Penal. Desde então dona Dodó não ouviu mais falar deles. De certo ficou apenas a informação oficial de que haviam deixado o presídio.
Nos últimos anos, necessitando de cuidados especiais por conta da avançada idade, tem dificuldades para andar e escrever. Bem diferente dos tempos de mocidade, quando incansavelmente escrevia novamente as carta enviadas para se precaver do dissabor de algum extravio. Não havia copiadoras e nenhum outro meio de reprografar os documentos pessoais. O jeito era repetir tudo à mão, palavra por palavra; linha por linha. Fazia isso habitualmente. Se pudesse, continuaria escrevendo. Quem sabe poderia se corresponder novamente com os amigos distantes. O casal e os filhos Sérgio e Maria Augusta. Ainda tem a esperança de encontrá-los um dia. É guerreira. Não esquece suas memórias de liberdade.
“Nem sempre a história envolta aos movimentos abolicionistas paira sobre grandes heróis e sangrentas batalhas. A sensibilidade, a persistência e o espírito de justiça foram as principais armas utilizadas por esta sertaneja anônima nesta singular batalha pela liberdade”, afirma um dos seus filhos Miguel de Paula. Ele quer, a partir de agora, resgatar toda a saga vivida pela mãe e o amigo distante, por meio de um livro de sua autoria.
ALEX PIMENTEL
Colaborador
Diário do Nordeste
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