sexta-feira, 19 de junho de 2009

Documentário "Garapa" gravado em Choró chocou o diretor José Padilha




"Eu saí de lá deprimido (...) Foi duro essa experiência de conviver com as pessoas, ficar amigo delas e não poder interferir radicalmente, porque eu tinha que fazer o filme (...) Ao tomar contato com essa realidade, não só eu mas toda a equipe de filmagem ficou deprimida."

Em entrevista à revista "Brasileiros", o diretor José Padilha assim respondeu à pergunta sobre como foi conviver 45 dias em Choró (CE) com as famílias retratadas no documentário "Garapa".

Se deprimido, revoltado, triste ou indignado, impossível sair do cinema sem reação. Pode-se questionar as soluções encontradas por Padilha para o filme - fotografia em preto e branco, distância do objeto documentado (apenas em alguns trechos há perguntas) -, mas é difícil não se envolver com o que se passa em quase duas horas de exibição.

Padilha escolheu três famílias cearenses - uma próxima ao centro urbano, outra de uma cidade pequena e uma da zona rural - para retratar o cotidiano da fome. Filmado em 2005, o contexto do assistencialismo do governo Lula não estava tão impregnado e funcional como hoje, mas algumas coisas dificilmente devem ter mudado.

Por exemplo, uma família fica sem a cota de leite porque o funcionário do governo (estadual ou federal, não fica claro) não entregou o item por causa do Carnaval - pela TV, descobre-se que era uma quarta-feira de Cinzas, a narração da apuração das escolas de samba denuncia.

As famílias são gigantescas e pouca orientação existe sobre controle de natalidade. Uma delas possuia 11 filhos na época da filmagem - hoje, são 13 e prestes a serem 14. Essa é a política de um país católico. Uma mulher não hesita em fazer sexo com o companheiro, mesmo sabendo que ele pode ter alguma doença, e diz que não sabe se o homem usa ou não camisinha. O discurso do Fome Zero nunca vai funcionar com as famílias se multiplicando sem orientação.

A bebida é uma constante. Um marido pega as coisas de casa para vender e passa o dia bebendo. Outro não vai trabalhar e fica o dia dormindo, por conta de uma ressaca. Ninguém escapa do alcoolismo, pais e mães reclamam de seus pais e mães constantemente bêbados e se transformam em pais e mães mais bêbados.

Trabalho não há. As pessoas não sabem se comunicar, falam mal e sem vocabulário, muitas das frases não têm sentido - um rapaz teve que ouvir umas quatro vezes a explicação de que o remédio que o cineasta deu para passar a dor de dente de uma das crianças não curou o mal, apenas atenuou a dor provisoriamente -, as crianças não possuem coordenação motora e se estão claramente desnutridas, as pessoas não sabem quando e onde nasceram, balbuciam os nomes completos e algumas só possuem o título de eleitor como documento - claro.

O filme caminha por closes, moscas e muriçocas convivendo com pratos de feijão duro, farinha, açúcar e água, a garapa do título, um cotidiano miserável e que, ajudado pelo p&b, parece um Brasil que imaginava-se não existir mais. Apresentado de forma crua, o impacto é mais forte. Em certo momento, talvez surja a pergunta "para onde ele vai caminhar agora?", já extenuado pela rotina das famílias.

A resposta aparece dessa convivência com a fome, de esperar o dia passar para ver o que vai acontecer, para saber o que comer e se há comida. Essa espera é longa, e o filme reflete essa passagem.

Extraído do blog http://verbotransitivo.blogspot.com

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